Nascida em Minas Gerais, Conceição Evaristo (1946) é uma escritora brasileira contemporânea de grande renome. Seus romances e livros de contos são admirados em todo o mundo. Ainda assim, ela é igualmente reconhecida por sua poesia, carregada de memórias pessoais e coletivas.
1. Mulheres Vozes
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Esta belíssima e famosa composição da autora narra a história de mulheres de gerações diferentes, pertencentes à mesma família. O eu-lírico descreve seus dias à medida que vai contando sobre a dor e a opressão que enfrentam.
A bisavó representa aqueles que foram seqüestrados e forçados a vir para o Brasil em navios. A avó, por sua vez, teria vivido no contexto da escravidão, sendo obrigada a obedecer.
A geração da mãe, trabalhadora como empregada doméstica, tem uma existência difícil e marginalizada. No entanto, começam a surgir algumas manifestações de revolta, transmitidas como relatos de privação e violência pelo eu-lírico daquela que escreve.
No entanto, o futuro tem mudanças guardadas e a voz da filha dela, carregando toda essa herança, vai escrever uma nova história de liberdade.
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2. A Paz do Silêncio
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
O poema de Conceição Evaristo reflete sobre o ato e o momento da escrita, comparando-o a uma espécie de "arte poética". A poesia é aqui relacionada aos sentidos, particularmente ao paladar, com expressões como "morder" e "mascar".
Escrever é uma experiência que deve ser desfrutada com calma e sem estresse. É um processo longo para descobrir a essência das coisas. Por isso, o eu-lírico pede para não ser interrompido quando parece pensativo ou está quieto.
Aquele sujeito está parado, mas não porque não queira se mover. Seu olhar está em busca de inspiração e sua mente está criando. Na sua perspectiva, a poesia emerge da calma e do silêncio, permitindo que ele tenha acesso a um universo interior que não existiria se outros o tentassem impelir a avançar.
3. Mulher Empoderada
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Em uma sociedade que ainda segue estruturas patriarcais, Conceição Evaristo canta uma canção de elogio às mulheres. O eu-lírico provê uma conexão com essa força feminina; ao falar de si mesma, ela celebra todas aquelas que estão ao seu lado.
O poema apresenta a gestação como algo sagrado e mágico, ilustrado por imagens que remetem à fertilidade. As palavras "inauguro a vida" são usadas para destacar o caráter quase divino do ato.
É sugerido nos versos que as mulheres são a base e o propulsor da humanidade, como um refúgio para a semente de onde tudo brota e se desenvolve.
4. Emissão de Certidão de Óbito
Os ossos de nossos antepassados
colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingidas de sangue,
elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.
A obra da escritora reflete seu papel como militante do movimento negro brasileiro. Seu poema em análise traz à tona memórias de sofrimento, lembrando como o racismo ainda é uma realidade presente.
Lembrando os antepassados que já faleceram, o sujeito estabelece uma comparação com os "mortos da atualidade". Em uma sociedade ainda separada e desigual, "a morte é certa" para alguns e não é por acaso que "a bala não tem erro no alvo".
O eu-lírico atesta que as práticas coloniais e opressoras ainda são fortes e que a certidão de óbito dos indivíduos negros já vinha sendo escrita "desde os negreiros". Esta violência desigual persiste, mesmo tantos anos depois, e acaba recaindo de forma desproporcional sobre eles devido à sua cor.
O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) tem sido o centro de debates intensos na vida pública internacional. É um tema de extrema importância e urgência.
5. A Chama Ardente em Mim
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.
O sujeito poético se vê dotado de algo maravilhoso que ele chama de "o fogo". Graças a ele, ele toma a palavra e destrói as representações que foram criadas por outros.
Através da escrita, o eu-lírico é capaz de reinventar a si mesmo e expressar-se usando a "dura pena". Desta forma, a literatura funciona como um meio de dar a conhecer seu ponto de vista ao mundo, ao invés de apenas seguir o que os outros dizem.
A poesia é considerada como uma forma de representação de si mesmo, revelando diversos fragmentos de dor e experiências de vida.
Principais Livros de Conceição Evaristo
Conceição Evaristo cresceu em uma família humilde de Belo Horizonte, formada por nove filhos. Durante a sua juventude, ela equilibrava os estudos com o trabalho doméstico e, mais tarde, através de um concurso público, se mudou para o Rio de Janeiro, onde iniciou sua trajetória acadêmica.
Desde o início dos anos noventa, Evaristo tem se destacado como escritora prolífica e versátil, trabalhando com romances, contos, poesias e ensaios. Além disso, também tem se comprometido com o movimento negro, participando de discussões e protestos.
As desigualdades sociais, a opressão racial, de gênero e de classe retratam-se claramente nas obras de Lúcia Cruz. Dois de seus livros mais famosos, Ponciá Vicêncio (2003) e Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), são provas disso mesmo.