Considerado um dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade (1902 — 1987) teve uma poesia marcada por questões políticas e sociais da época. Apesar disso, seu trabalho nunca perdeu o foco no indivíduo e suas experiências diante do mundo, como parte da segunda geração do modernismo.
O autor escreveu diversos trabalhos enfocando as relações humanas e seu significado para a jornada pessoal e comunitária.
1. A Magia da Amizade
Certas amizades comprometem a idéia de amizade.
O amigo que se torna inimigo fica incompreensível;
o inimigo que se torna amigo é um cofre aberto.
Um amigo íntimo — de si mesmo.
É preciso regar as flores sobre o jazigo de amizades extintas.
Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada.
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.
O poema foi incluído na obra O Avesso das Coisas (1987), que consiste em explicações de diversos temas, apresentadas como entradas de um dicionário. Através dele, o autor aborda um assunto atemporal: as conexões interpessoais e as ligações que estabelecemos ao longo da vida.
É necessário aprender a equilibrar as relações desfeitas, respeitando o passado e cuidando delas como se fossem plantas. Assim evitamos o sufocamento ou o esgotamento das amizades. Devemos tratá-las com consideração, para que possam sobreviver e florescer.
A conclusão final deste verso é repleta de boa sabedoria: ainda que nosso isolamento nos faça querer afastar de tudo e todos, precisamos dos nossos amigos para que possamos sobreviver.
2. Uma Despedida Melancólica
Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.
Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.
Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.
Neste poema de Brejo das Almas (1934), o sujeito poético expressa desabafos e há um apelo a uma companhia amiga. Ele não se sente bem e pede ajuda, mostrando o desejo de se unir a alguém.
Ele sugere que, em vez de prosseguirem enfrentando tudo isso sozinhos, eles sofram juntos. O álcool ajudaria a abrir as suas inibições, permitindo que eles se expressassem sem se preocupar com as barreiras impostas pela sociedade.
O encontro emocionante oferece a oportunidade para pessoas normalmente mais reservadas de expressarem seus sentimentos. É, sem dúvida, um dos aspectos mais significativos de uma amizade: poder conversar sobre qualquer tema sem temer possíveis julgamentos.
3. A Magia da Bruxa
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida ao meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que lêem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse neste minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
No poema, o eu-lírico é transportado para o caos da cidade grande e se sente sozinho e profundamente nostalgia. À noite, quando consegue parar e refletir sobre a sua vida, o indivíduo é tomado por um sentimento devastador de saudade. Esta célebre obra de José foi publicada em 1942.
A saudade de ter alguém a quem confessar seus problemas e segredos, é grande para o sujeito. Contudo, é algo ao qual não consegue dar fim, pois ele não tem amigos e nem tem a chance de conhecer novas pessoas que possam ocupar esse vazio.
Ao ouvirmos esse triste tema, somos impelidos a refletir sobre nossas vidas e a considerar quantos entre nós estão completamente sós, cercados por multidões.
Leia o poema.
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4. A Sociedade a Nossa Conquista
O homem disse para o amigo:
— Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
— Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmunga:
— Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: — Que idiota.
— A casa é um ninho de pulgas.
— Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
"Alguma Poesia" (1930) é muito crítica em relação à forma como nos relacionamos. A sociedade nos dá parâmetros superficiais para julgarmos os outros, mesmo aqueles que consideramos nossos amigos. É triste ver que muitas vezes, não temos compaixão para com aqueles que estão próximos.
O poema destaca que é necessário evitar o distanciamento natural e a hipocrisia, pois eles envenenam as amizades verdadeiras. As pessoas muitas vezes vivem com medo de serem julgadas e, por isso, seguem esse comportamento. Entretanto, é preciso evitar esses atos a todo custo.
5. Para Alguém Ausente
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
A tristeza e a dor causadas pela partida de um grande amigo são plenamente retratadas nessa despedida emocionante. O sujeito poético expressa o profundo sentimento de perda, bem como a mágoa, a raiva e a saudade que sente por não ter conseguido se despedir de quem um dia foi seu companheiro. A partida inesperada e prematura deixam o homem impotente diante da morte.
Nossa vida é extremamente dependente da amizade; o fato de ter alguém com quem possamos compartilhar nossos segredos, sejam eles bons ou ruins, é fundamental. Por tal motivo, a perda de um grande amigo tem um efeito devastador, pois nos deixa devastados com aquela sensação de injustiça.
Em 1996, o poema A um ausente foi publicado em Farewelll, uma obra póstuma de Carlos Drummond de Andrade. Esta obra foi preparada antes do seu falecimento. Muitos acreditam que o poema foi escrito como homenagem ao poeta mineiro Pedro Nava, que infelizmente cometeu suicídio em 1984.
6. Encontrando Paz na Praia
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
A Segunda Guerra Mundial foi uma época dolorosa e angustiante na História internacional, que deu origem ao conhecido poema publicado no livro A Rosa do Povo (1945). Esse poema assume um tom disfórico, tornando-se importante lembrar das circunstâncias em que foi produzido.
Um tom confessional é o tom que o sujeito poético usa para descrever o seu desgosto generalizado. Uma das principais causas é a perda do seu melhor amigo, mesmo antes que da falta de um amor.
Sem a parceria e amizade dos nossos conhecidos, o eu-lírico parece mais solitário do que nunca, com apenas a companhia do seu cachorro para preencher os dias. Esta triste realidade nos dá a noção de quanto é importante ter amigos que nos dêem momentos de alegria com vários pequenos gestos.
Ouça o poema recitado pelo autor.