A editora Imago teve a honra de publicar o primeiro livro da escritora mineira Adélia Prado: Bagagem (1976). Apadrinhado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que elogiou sua estreia literária, ele ainda enviou alguns poemas para a Editora. Adélia Prado lançou seu primeiro livro aos 40 anos.
Logo após seu lançamento, o livro de Adélia foi muito bem recebido pela crítica, solidificando a sua posição no mundo literário. Desde então, a poeta tem sido produtiva, tornando-se uma das principais figuras da poesia brasileira.
Adélia Prado é conhecida por usar em seus poemas um estilo descrito como crítico-romântico. Ela emprega em sua obra uma linguagem informal, apontando para o leitor um novo olhar sobre o cotidiano, que geralmente é repensado.
1. Licença para a Poesia
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Em sua obra de estreia, Bagagem, o poema "Com licença poética" abre o livro, apresentando a autora desconhecida ao grande público.
O poeta Carlos Drummond de Andrade foi fundamental para a carreira de Adélia. Além de servir de inspiração poética, Drummond indicou o livro da escritora mineira para um editor, o que acabou resultando em seu primeiro acordo editorial. Isso tudo é homenageado nos versos que fazem referência ao Poema de sete faces, de Drummond.
Os versos acima retratam um tom de oralidade, caracterizado pela informalidade e empatia com o leitor. O eu-lírico parece querer se aproximar do leitor, oferecendo as suas qualidades e fraquezas em versos. Além disso, o poema sugere a difícil condição da mulher na sociedade brasileira, destacando os desafios que ela enfrenta.
2. A Importância da Alfândega
O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.
O título Alfândega do poema, que está inserido no livro Bagagem, é altamente significativo, pois indica um eu-lírico em trânsito, que carrega consigo apenas aquilo que considera essencial.
Na alfândega, os viajantes costumam declarar bens físicos para serem transportados, mas o que o eu-lírico oferece nesta viagem é algo diferente: sentimentos, impressões, recordações e subjetividades.
Depois de descrever um fluxo de consciência que traz emoções ao acaso, o sujeito poético conclui de forma inesperada que deve deixar para trás um dos seus bens (o dente) para prosseguir.
3. Apreciando o Agora
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
A poesia aborda o caráter passageiro do tempo, o fluxo inabalável da vida e como devemos escolher como viver.
O eu-lírico recorre a imagens simbólicas como um bule azul descascado e uma garrafa de pimenta partida ao meio para representar as diferentes etapas da existência. Estas metáforas reforçam o desgaste e o uso que a vida traz consigo.
Dois elementos do nosso cotidiano repetitivo são o latido de um cão e um céu limpo. Estes signos aleatórios se alinham aos objetos do nosso dia a dia.
O eu-lírico encerra o poema de uma forma animada, com o corpo que se regozija e a felicidade que supera a melancolia.
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4. A Abordagem Formalista
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Estes versos estão inseridos em um poema maior que critica aqueles poetas que se desligam da realidade, preocupando-se com escolas, movimentos literários, regras e padrões. Este poeta é caracterizado como "cerebral", centrado na lógica e na exatidão.
A formalística exibe um tom irônico e provocador. Nesses versos iniciais, já se pode perceber o estilo de composição que Adélia repudia e o gênero de poesia que ela busca combater.
A poética da Adélia Prado se destaca pela simplicidade, pelo real vivido, pelo cotidiano e pela informalidade, sendo assim diferente do personagem poeta citado.
Adélia investiu em sua carreira literária na construção de uma investigação mais profunda sobre a linguagem e isso é evidenciado em seu meta-poema. Nele, a poeta reflete sobre seu próprio fazer, escrevendo versos que pensam a condição do poema em si.
5. Fragmento de um Todo
Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.
O poema começa com a separação do dia e da noite e com reconhecimento para quem foi sensível o bastante para notar quando o sol nasceu.
Existem muitas contradições nos versos: o tempo que parece passar lentamente mas ainda assim não passa o suficiente, a noite que aparenta não chegar mas que chega de forma inesperada, o corpo que deseja se mover mas que permanece estático, o pensamento inquieto que não se conforma com a posição de deitar.
Apesar das dicotomias presentes no poema Fragmento, o leitor é apaziguado pelo anúncio de passagem das horas que vem de um indivíduo desconhecido. Esta brisa agradável, que entra pela janela, proporciona um final solar, ainda que, naquele momento, o paciente estivesse sofrendo angústias.
6. Celebração de Matrimônio
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
O casal protagonista de "Casamento" parece ter maturidade, calma e estabilidade – sinais daquele amor seguro e pacífico entre eles.
O eu-lírico gosta de demonstra o seu carinho pelo parceiro e está disposta a sair da sua zona de conforto para fazer isso. Ela levanta-se mesmo no meio da noite para poder cozinhar ao lado dele. Esses pequenos atos de companheirismo são fundamentais para a construção e manutenção de uma relação de longo prazo, tudo acontecendo com grande naturalidade.
O casal partilha um momento de tranquilidade, sentindo-se tranquilamente acolhido na companhia um do outro.
7. A Senhora Louca
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Com uma cena aparentemente banal, vivida no passado ao lado da mãe, o belíssimo poema começa. Esta experiência do vivido inspirou uma reflexão mais abrangente sobre a vida.
A chuva forte ao lado de fora cria a sensação de uma máquina do tempo. A mãe, como uma poeta, faz a sua escolha: enquanto ela escolhe suas palavras, a filha sai para procurar os ingredientes para a receita. Trinta anos mais tarde, ela retorna à casa e a mãe já não está lá. Em seu lugar, ela encontra a sua própria família.
Nesses versos, a memória e a relação do sujeito lírico com o tempo e seus familiares são o foco principal. As palavras recuperam o passado, proporcionando uma experiência temporal que abarca tanto o passado quanto o presente e o futuro.
8. Uma Maneira
Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.
A lírica amorosa de Adélia Prado é mais uma prova de sua grandeza. Seus versos refletem o sentimento de urgência e desejo do eu-lírico, uma forma de amar que não pode ser contida.
O sujeito poético menciona exemplos práticos e cotidianos para ilustrar o seu modo ideal de amar: a partilha da cama, o carinho nos cabelos, a vontade de espremer as espinhas nas costas do amado.
A contraste entre o que o eu-lírico desejava e aquilo que realmente sentia é retratada nos versos. O que ele queria era um amor tranquilo e seguro, mas o que vivia era repleto de insegurança e preocupação. Ao narrar sua história, ele reforça essa distinção entre os dois tipos de amor.
9. Visão pela Janela
Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.
A janela é um objeto poético único: conecta o lado interno ao externo, permitindo que ambos sejam observados. Ao mesmo tempo, cria uma divisão entre os dois universos.
Da janela, vimos o mundo a nossos pés: os amigos que vêm e vão, as fases de vida das pessoas que conhecemos. Através das vidraças, registramos acontecimentos importantes para nós mesmos, como a chegada do amado e o pedido de casamento.
Adélia Prado compôs versos em louvor à janela, um objeto comum que, muitas vezes, não chama atenção. A lírica reflete um sentimento alegre, esperançoso e feliz. Ao celebrar a janela, também celebra-se a vida.