Análise e Significado do Poema "O Navio Negreiro" de Castro Alves


Escrito por Sónia Cunha

Castro Alves compôs uma poesia épica intitulada Os Escravos, na qual está incluída a poesia Navio Negreiro.

Escrita em 1870, na cidade de São Paulo, esta poesia descreve as condições infelizes sofridas pelos africanos viajando do continente para o Brasil durante o tráfico de escravos. A obra foi dividida em seis partes, possuindo uma metrificação variada.

Análise do Navio Negreiro

A obra Os Escravos contém a poesia Navio Negreiro, dividida em seis partes. A metrificação variada desta poesia proporciona uma sensação de unidade entre a forma e o conteúdo. Esta harmonia entre a forma e o tema presente no texto confere ao poema um efeito peculiar.

Introdução

O céu e o mar, infinitos, com sua cor azul e seu amplo espaço, são o centro da poesia. Ali, no meio da imensidão, está o barco, que se desloca com o impulso do vento e com o esforço dos homens, desidratados pelo sol.

Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!

O poeta observa com amor e simpatia o barco passando pelo mar. Ele deseja se aproximar, no entanto o navio escapa de seu alcance. O poeta se sente estimulado por essa travessia poética.

Continuação

O poeta começa a imaginar de qual é a nacionalidade do barco que segue no alto-mar. Contudo, não é importante. Qualquer navio que navega pelo oceano está repleto de poesia e de saudades. Cada país tem sua própria melodia: os espanhóis com o toque especial da Andaluzia, os gregos com as canções de Homero.

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.

Parte Três

Com os olhos do Albatroz, o poeta foi capaz de vislumbrar o que se passava no navio. Ao invés de encontrar saudades e poesia, encontrou uma triste melodia e um quadro de miséria.

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

A Quarto Parcela

O poeta detalhou uma cena perturbadora no convés do navio: uma multidão composta por negros, mulheres, velhos e crianças, todos unidos por algemas, dançando sob os golpes dos marinheiros. A descrição foi longa e precisa, com seis estrofes.

O som metalizado dos ferros rangeram e a orquestra formada por marinheiros chicoteando os escravos criou uma atmosfera sinistra. A ligação entre o prazer da música e a dor da tortura gerou uma profunda conotação poética na descrição da cena. Satanás, que presenciava a dança bizarra, deu seu riso de aprovação como se fosse um show de horror especialmente criado para o diabo.

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...

A Quinta Parcela

O poeta expressa com indignação o seu desgosto face ao navio negreiro, solicitando a Deus e à fúria do mar para que acabem de uma vez por todas essa infâmia. A primeira estrofe é repetida no fim da composição, fortalecendo o seu pedido.

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! ...

Na quinta parte, imagens contrastantes de liberdade no continente africano e a prisão no navio negreiro são mostradas. No lugar da noite escura e aberta da savana, o telespectador vê o porão sombrio e abarrotado do navio. As condições desumanas do transporte de escravos são expressas de maneira poética, tornando mais evidente a desumanização a que eles estavam sujeitos.

Parte Sexta

O poeta pergunta qual a bandeira que está sendo hasteada nesse navio que carrega tamanho sofrimento. Isso é uma referência à segunda parte do poema, onde antes a bandeira não tinha importância pois se ouvia poesia e canto. Mas agora, ela se tornou essencial.

Ao avistar a bandeira do Brasil hasteada, o poeta é tomado por grande desapontamento, pois lembra os ideais que sua pátria representa: a luta pela liberdade, esperança e prosperidade. Porém, esses valores são ofuscados pelo tráfico de escravos, que mancha a honra de toda a nação.

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

Descobrindo o Significado

No poema de Castro Alves, há uma pequena narrativa sobre o tráfico de escravos que aconteceu entre a África e o Brasil. O elemento poético presente nos versos destaca-se através das imagens e das metáforas, mais particularmente na quarta parte, onde a crueldade imposta aos escravos é vividamente descrita.

A beleza e a infinitude do mar e do céu contrariam a crueldade e a escravidão encontradas nos porões do navio negreiro. Uma de suas características mais evidenciadas é o universalismo. Quando a viagem é propulsa por interesses comerciais ou por aventura, as bandeiras e as nações perdem seu significado, se tornando relevantes apenas quando o motivo da navegação é desumano.

O patriotismo de Castro Alves o leva a realizar críticas ao tráfico de escravos. Ele vê o Brasil como um lugar de liberdade e de um futuro promissor, o que é incompatível com a escravização. Embora seja um liberal, ele também acredita no poder da religiosidade e pede a Deus uma intervenção divina para acabar com o tráfico negreiro.

A Terceira Geração Romântica de Castro Alves

Castro Alves é considerado um dos maiores poetas da terceira geração romântica, conhecida como geração Condor. Apelidado de "único poeta social do Brasil", suas obras são reconhecidas e prestigiadas pela crítica. Seu principal livro, Espumas flutuantes, foi o único publicado durante sua vida e garantiu a preservação de todas as outras obras.

Os versos poéticos de Victor Hugo e o pensamento liberal do século XIX serviram como inspiração para o poeta Castro Alves. Esta influência o levou a se engajar nas questões sociais, principalmente no movimento abolicionista. Por conta disso, Castro Alves ficou conhecido como "Poeta dos Escravos".

Veja os posts a seguir

Abolição do Escravismo

O movimento Abolicionista surgiu da filosofia Iluminista, que defendia a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, proclamando a igualdade e liberdade entre as pessoas. Por meio dessas ideias, foram possíveis as Revoluções mais significativas do século XIX e também o avanço da industrialização, que alterou a economia mundial.

A produção industrial na cidade gerava mais riquezas que a produção escrava nas plantações, apesar de os escravos não serem consumidores. Contudo, para as indústrias, eles eram potenciais compradores se se tornassem livres. Dessa forma, a perspectiva de adquirir mais clientes foi um dos fatores motivadores do movimento abolicionista.

O Navio Negreiro: Um Poema Completo

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia

Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia...

..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviathan do espaço,

Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

— Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso,

Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou,

(Porque a Inglaterra é um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir.. .

O Francês — predestinado —

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,

Que a vaga jônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu ...

Nautas de todas as plagas,

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu! ...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,

E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N'alma — lágrimas e fel...

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram crianças lindas,

Viveram moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus ...

... Adeus, ó choça do monte,

... Adeus, palmeiras da fonte!...

... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...

Depois, o oceano de pó.

Depois no horizonte imenso

Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! ...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Sónia Cunha
Escrito por Sónia Cunha

É licenciada em História, variante História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2003) e em Conservação e Restauro pelo Instituto Politécnico de Tomar (2006). Ao longo da carreira profissional, exerceu vários cargos em diferentes áreas, como técnico superior de Conservação e Restauro, assistente a tempo parcial na UPT e professora de História do 3º ciclo e ensino secundário. A arte e as letras sempre foram a sua grande paixão.