A obra-prima literária do escritor mineiro, “A Máquina do Mundo”, foi lançada pela primeira vez em Claro Enigma (1951). Esta composição apresenta um tema e forma que se aproximam dos padrões da poesia clássica.
O poema épico de Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, é considerada uma obra incontornável da literatura portuguesa. A partir do título deste texto, estabelece-se uma intertextualidade com a referida obra.
A Engrenagem do Universo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo o que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
é a memória dos deuses, e o solene
sentimento da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Explorando o Poema: Análise e Interpretação
"A Máquina do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade, é considerado o maior poema brasileiro pela Folha de São Paulo em 2000. Apesar de ser um texto complexo e enigmático, sua importância é indiscutível.
Geralmente, a obra poética do autor é associada ao modernismo nacional da segunda geração, que se caracteriza por não usar rimas, versos livres e temas cotidianos, entre outros elementos. No entanto, em Claro Enigma, o modernista regressa às influências da antiguidade, tanto na sua abordagem temática como na sua forma.
Nesta obra, há uma cuidadosa atenção àmetrica. Cada estrofe é formada por três versos decassílabos (dez sílabas cada) que seguem o mesmo ritmo presente em grandes literaturas, como Os Lusíadas.
O conceito da "máquina do mundo" como uma metáfora para descrever as engrenagens que regem o Universo e os indivíduos não é uma novidade. Ao contrário, já estava bastante presente na literatura medieval e renascentista. Uma de suas mais notáveis referências é o canto X do famoso épico de Camões.
Vasco da Gama teve a sorte de ser apresentado à máquina pelo encantador ninfa Tétis. Com isso, ele descobriu o seu destino e o que o aguardava. No entanto, o poeta brasileiro não demonstrou a mesma empolgação.
Drummond nasceu em Minas Gerais, o que o aproxima de seu sujeito. Está andando pela estrada, cansado e "desenganado", quando de repente é tomado por uma grande revelação. Sem saber como reagir a isso, ele fica atordoado.
Ao deparar-se com a "total explicação da vida", que está além da compreensão humana, o eu-lírico fica assombrado com a magnitude de tudo o que existe. Decide então, abaixar os olhos e prosseguir seu caminho, percebendo a sua insignificância e fragilidade diante de um conhecimento tão superior. Sem esperança de compreender ou desvendar o tão grandioso mistério, segue em frente.
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