Análise e Significado da Ideologia Musical de Cazuza


Escrito por Rebeca Fuks

A obra "Ideologia" foi o terceiro álbum solo de Cazuza, lançado em 1988. Sua letra foi composta pelo próprio e musicada por Roberto Frejat, ex-companheiro de banda de Barão Vermelho.

Ideologia foi a primeira canção escrita por Cazuza após o seu diagnóstico de Aids, em 1987. O disco foi gravado logo após o cantor retornar dos Estados Unidos, onde havia feito um tratamento. Referências ao diagnóstico podem ser encontradas na letra da música.

A capa do disco foi motivo de grande controvérsia, pois misturava símbolos que representavam valores antagônicos. A cruz suástica nazista, a foice e o martelo da luta operária, a estrela de Davi, entre outros, foram utilizados em sua composição.

Com sua temática social e cultural da época, a música alcançou grande sucesso desde o seu lançamento. O refrão, trágico e quase profético, se mantém na memória de muitos brasileiros, até hoje, tantos anos após o lançamento.

Canção

Meu partido

É um coração partido

E as ilusões estão todas perdidas

Os meus sonhos foram todos vendidos

Tão barato que eu nem acredito

Eu nem acredito ah

Que aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Frequenta agora as festas do "Grand Monde"

Meus heróis morreram de overdose

Eh, meus inimigos estão no poder

Ideologia

Eu quero uma pra viver

Ideologia

Eu quero uma pra viver

O meu tesão

Agora é risco de vida

Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll

Eu vou pagar a conta do analista

Pra nunca mais ter que saber quem eu sou

Saber quem eu sou

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Agora assiste a tudo em cima do muro, em cima do muro

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Principais Pontos do Resumo

O artista expressa sua impotência e decepção através da música, diante à situação política e social do país. Como parte de uma geração que almejava a liberdade, ele fica frustrado pelo Brasil posterior à ditadura ser conservador e rígido na moral.

Ao recitar "Ideologia", o eu lírico reflete a angústia de muitos brasileiros que se viram absorvidos pela sociedade e, consequentemente, desistiram do seu sonho de mudança. Eles ficam presos em rotinas exaustivas, esquecendo seus ideais e valores.

Explorando os Elementos da Música

Primeira Estrofe

Meu partido

É um coração partido

E as ilusões estão todas perdidas

Os meus sonhos foram todos vendidos

Tão barato que eu nem acredito

Eu nem acredito ah

Que aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Frequenta agora as festas do "Grand Monde"

A tristeza e frustração presentes na época são retratadas de forma genial nos versos iniciais da música: "Meu partido / É um coração partido".

A insatisfação, a falta de orientação e de identificação política e ideológica deste sujeito poético é evidente desde o início.

Sem ligação a nenhuma força política, ele não divide opiniões do mundo ou crenças com nenhuma agremiação ou organização. O que o aproxima do conjunto de pessoas é o tormento, a desolação geral ("todas as esperanças estão arruinadas").

Uma sensação de revolta e até de traição percorre a letra. "Sonhos foram todos vendidos" é uma referência às esperanças de que haveria um Brasil mais justo após a ditadura, mas que nunca se realizaram. O sujeito poético deixou a ingenuidade da juventude e passou a ver de perto as dificuldades e as injustiças que permanecem ao redor.

A obra faz uma clara alusão ao sistema capitalista, destacando a necessidade de trocar sonhos e aspirações pela rotina e tarefas cotidianas, que são essenciais para sobreviver.

Revendo o estado da sua vida atual, ele se recorda de quem já foi no passado; "aquele garoto que queria mudar o mundo". Ele fica com tom de tristeza e perplexidade, como se de repente tivesse notado a inconsistência de suas próprias ações.

Mesmo que inicialmente o sujeito poético lutasse contra o sistema através de ideais revolucionários, acabou se integrando e sendo assimilado pelo mesmo. Ele passou a frequentar as festas da alta sociedade e a se tornar igual a aquilo que uma vez criticava. "Grand Monde" era uma boate LGBT de São Paulo muito frequentada por pessoas famosas e artistas, incluindo Cazuza.

A Beleza do Refrão

Meus heróis morreram de overdose

Eh, meus inimigos estão no poder

Ideologia

Eu quero uma pra viver

Ideologia

Eu quero uma pra viver

O refrão da música oferece uma perspectiva sobre o contexto político e sociocultural de sua época, que ainda é relevante e atualizada com o passar dos anos. O primeiro verso fala sobre lendas da contracultura, como Jimi Hendrix e Janis Joplin, que estão desaparecendo cada vez mais.

Visto como uma fonte de alívio e esperança para a transformação social, o sentimento entre aqueles que ficaram era agora de orfandade e isolamento, devido às mortes de muitos por causa de seus vícios em drogas.

Após um impiedoso período de ditadura militar entre 1964 e 1985, que foi marcado por autoritarismo, violência e a privação de direitos, o povo brasileiro desejava ansiosamente uma liberdade que infelizmente não chegou. O segundo verso do poema ilustra essa triste realidade.

No ano de 1987, quando Cazuza compôs a música, o Brasil vivia um processo de transição para uma democracia plena, mas ainda não havia eleições diretas para presidente, isso só aconteceria três anos depois, em 1990.

Em 1988 foi aprovada a nova Constituição, mas a época era marcada por avanços e recuos, sendo o conservadorismo predominante. A letra evidencia a ausência de escolha e de controle por parte do sujeito poético, deixando-o com a impressão de derrota.

Diretas Já em Belo Horizonte 1984

"ideologia é a gente se encontrar na mesma direção". Cazuza explicou, em uma entrevista, que o termo "ideologia" tem um significado neutro: são princípios, ideias e doutrinas que nos ajudam a encontrar direções em comum. Ele definiu a palavra como "encontrar-se na mesma direção". Por outro lado, esse termo também pode ter uma conotação crítica, servindo como ferramenta para exercer dominação, persuasão e manipulação.

Quando fiz "Ideologia", nem sabia o que isso queria dizer, fui ver no dicionário. Lá estava escrito que indica correntes de pensamentos iguais e tal…

Para sobreviver, o sujeito necessita de uma ideologia. Assim, busca por doutrinas, princípios morais e sociais para os quais possa se aferrar, em um momento em que se sente desamparado. Por causa da tristeza e da insatisfação com a realidade, precisa se posicionar, tendo que optar por um lado.

Segunda Estrofe

O meu tesão

Agora é risco de vida

Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll

Eu vou pagar a conta do analista

Pra nunca mais ter que saber quem eu sou

Saber quem eu sou

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo

Mudar o mundo

Agora assiste à tudo em cima do muro, em cima do muro

Ao abalar os valores da sociedade conservadora, o artista falou abertamente sobre sexualidade e a epidemia do HIV na segunda estrofe de sua música. A Aids estava matando muitas pessoas inevitavelmente, especialmente na comunidade LGBT. Ao descobrir que também estava portador da doença, ele foi capaz de transmitir toda a angústia e medo que estava presente na sua geração.

O ato sexual começou a ser vinculado ao perigo, ao risco. O que antes era visto como intimidade e prazer, começou a ter um lado obscuro e temível, aumentando assim a sensação de solidão dos indivíduos, que se unem somente a seu próprio corpo. A liberdade sexual preconizada pela contracultura chegou ao fim, sumindo aquela ideia de "sexo, drogas e Rock'n' Roll" e o sonho de uma revolução.

Durante os anos oitenta, o autor menciona a difusão da psicanálise no Brasil, o que poderia estar relacionado com os traumas e à crise identitária que assolavam grande parte dos brasileiros. Como cronista e crítico da sua geração, ele refletia sobre os reais motivos desse fenômeno.

A memória do idealista que ele era no passado aparece para lhe recordar o que ele se tornou. Com o decorrer do tempo, ele foi abandonando suas lutas e acabou se adaptando à sociedade, sem mudar nada. Desapontado, confessa que hoje, está "assistindo tudo de fora", ou seja, demonstrando falta de compromisso, indiferença e ausência de posicionamento.

O Potencial da Música

Cazuza oferece uma imagem realista e dolorosa de sua geração. Ao discutir o Brasil, ele reflete sentimentos de impotência e desânimo, servindo como um espelho para a sociedade em que as hipocrisias e discordâncias são claramente identificadas.

O sonho de um país livre de ditadura, compartilhado pelo artista e seus companheiros, nunca se tornou realidade. Apesar da queda da ditadura, o Brasil manteve seus preconceitos e desigualdades sociais.

“Sempre amei cantar. É o meu maior sonho. O cantor disse em uma entrevista que cantar é o seu maior sonho e que sempre amou fazê-lo.

(...) A gente achava que ia mudar o mundo mesmo e o Brasil está igual; bateu uma enorme frustração Nos conceitos sobre sexo, comportamento, virou alguma coisa, mas deixamos muito pelo caminho. A gente batalhou tanto e agora? Onde chegamos? Nossa geração ficou em que pé?

Característico do trabalho de Cazuza, suas músicas têm um tom provocativo, contando histórias sobre costumes sociais e expressando críticas. Nas letras, ele expõe os seus próprios ideais, que, muitas vezes, se vão com a dor causada pela rotina.

Cheio de desapontamento com a geração que parecia derrotada, sem ânimo de combate e sem crenças, ele aceitou a sua missão e convocou seus companheiros para o confronto.

Escrita em 1987, a composição de Cazuza evidenciava a profundidade de seu pensamento, pois como um porta-voz de sua geração, o compositor conseguia perceber e expressar aquilo que a sociedade procurava ocultar. Suas letras denunciavam as injustiças que, infelizmente, ainda permanecem até os dias de hoje.

Examinando o Clipe Original

Entre destroços e ruínas, começa o vídeo. Simbolismos contrastantes são apresentados ao espectador: Cazuza mistura o martelo e foice do comunismo com a cruz suástica do nazismo. Em seguida, a estrela de Davi, o retrato de Jesus Cristo, o Yin Yang chinês, o "paz e amor" hippie, o sinal do dólar e o símbolo anarquista entram em cena, juntamente com panfletos políticos.

Na capa do disco, objetos variados formam a palavra "ideologia", transmitindo a mensagem de que o cantor busca representar o pensamento de sua geração diante de várias influências.

Figuras tão variadas como Mao Tsé-Tung, Hitler, Albert Einstein, Sigmund Freud, Marilyn Monroe, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Bob Marley formam o imaginário comum. Estas pessoas, que têm fama tanto boa quanto má na cultura popular, representam ideais totalmente diferentes.

Os diversos tipos de calçados – sapatos, tênis, chinelos e sandálias – representam a diversidade e multiplicidade dos brasileiros, assim como a sua rotina apressada e exaustiva. O simples ato de caminhar passa a ser o símbolo desta realidade.

Cazuza subiu em cima de uma televisão para criticar a mídia brasileira e a cegueira do povo que confiava apenas no que via na tela. Em seguida, cantando com uma cartola na cabeça, ele sobe em uma pilha de livros para chamar a atenção dos acadêmicos e intelectuais daquela época.

Cazuza usa sua posição privilegiada para satirizar as camadas mais conservadoras da sociedade, aparecendo em ateliês de arte, estúdios de gravação e andando de barco. Ao mesmo tempo, ele assume os luxos da burguesia, sendo seu próprio alvo de sátira.

O cantor experimentou vários tipos de chapéus - de cowboy, chinês, com orelhas de Mickey, de cangaceiro, etc. Tal sobreposição parece representar a confusão de um povo que, ao se deparar com muitas influências, parou para pensar e esqueceu quem é.

O Legado de Cazuza

Cazuza foi uma das maiores vozes da música brasileira. Ele tinha letras profundas que refletiam sobre a realidade do país e a cultura brasileira. Sua personalidade carismática e provocadora fez dele um agitador social e pensador de seu tempo.

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Rebeca Fuks
Escrito por Rebeca Fuks

É graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), possui mestrado em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutorado em Estudos de Cultura pelas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).