Análise, Significado e História da Música "Cálice" de Chico Buarque


Escrito por Laura Aidar

Em 1973, Chico Buarque e Gilberto Gil escreveram a canção Cálice. Por conta de seu conteúdo de denúncia e crítica social, foi censurada pelas autoridades da ditadura, sendo liberada apenas cinco anos depois. Por fim, em 1978 Milton Nascimento foi convidado para gravar em seu lugar, sendo incluída no álbum homônimo de Chico.

A canção "Cálice" é reconhecida mundialmente como um hino de resistência ao regime militar. É uma composição de protesto que utiliza metáforas e duplos sentidos para simbolizar a repressão e a violência impostas por governos autoritários.

Melodia e Versos

Cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai, abrir a porta

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade

Mesmo calado o peito, resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno

Nem seja a vida um fato consumado

Quero inventar o meu próprio pecado

Quero morrer do meu próprio veneno

Quero perder de vez tua cabeça

Minha cabeça perder teu juízo

Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Me embriagar até que alguém me esqueça

Interpretação da letra

Cântico Refrão

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Referenciando uma passagem bíblica - "Pai, se queres, afasta de mim este cálice" (Marcos 14:36) -, a música lembra Jesus antes do Calvário, evocando sentimentos de perseguição, sofrimento e traição.

Ao escutarmos a semelhança entre “cálice” e “cale-se”, logo percebemos que a frase carrega consigo um significado ainda mais forte. Como se implorasse “Pai, livra-me desse silêncio”, o sujeito lírico pede para que a censura seja erradicada. Essa mordaça que o impede de se expressar deveria ser banida de sua vida.

A Bíblia relata a paixão de Cristo como analogia para o tormento de um povo. Neste caso, é a realidade brasileira durante a ditadura que é usada como referência. Se, na história sagrada, o cálice estava repleto do sangue de Jesus, na vida real brasileira o sangue que transborda é o das vítimas cruelmente torturadas e mortas pela repressão do regime.

Início da Estrofe

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

A repressão era presente em todos os aspectos da vida, tornando o ar mais pesado e amedrontando os indivíduos. O indivíduo expressava a sua dificuldade em engolir aquela "bitter drink" que lhe era oferecida, ou seja, encarar o seu sofrimento como algo comum e aceitá-lo como se fosse natural.

Refere também à labuta diária que é obrigado a aceitar calado, o trabalho árduo e mal pago, a exaustão que se tornou uma rotina e a opressão que o acompanha.

Mesmo que não possa se expressar livremente, o que ele continua sentir permanece. "Mesmo calada a boca, resta o peito", e o que está preso ali dentro se mantém.

Propaganda do regime militar.

O eu lírico afirma preferir ser "filho da outra" em vez de se declarar "filho da santa", o que aqui representa o regime político em vigor. Isto é, uma atitude desafiadora ao imaginário religioso, entendido como intocável, inquestionável e quase sagrado pelas autoridades.

A ausência de rimas indica que os autores desejavam inserir um palavrão, mas precisaram delongar a sílaba para evitar a censura. A escolha de um termo diverso é suficiente para transparecer seu significado real.

O sujeito lírico, se diferenciando totalmente da mentalidade imposta pelo governo, expressa seu desejo de ter nascido em "uma realidade que não seja tão letal".

Eu desejava uma vida livre de ditadura, livre de enganos como o "milagre econômico" que o governo proclamava e sem o uso de forças brutas, sejam elas autoritarismo, violência policial ou tortura.

Estrofe 2

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

Nos versos, vislumbramos o conflito interno do sujeito poético ao despertar em silêncio todos os dias, consciente das violências que ocorriam no período noturno. Sabendo que, cedo ou tarde, também ele se tornaria vítima desses atos.

Chico refere-se a um modo frequentemente usado pela Polícia Militar Brasileira. Neste método, eles invadiam casas à noite, pegavam "suspeitos" de suas camas para prendê-los, matavam alguns e faziam desaparecer os outros.

Diante de tamanho cenário de terror, o desejo de gritar incontrolavelmente, resistir, lutar e expor sua raiva no intuito de serem ouvidos, é impossível de esconder.

Protesto pelo fim da censura

Ele se sente "atordoado", mas está "atento", alerta e pronto para interagir com a reação de grupo.

Ele assiste passivamente da "arquibancada", temendo o "monstro da lagoa". Esta figura, de contos de fadas, simboliza aquilo que aprendemos a temer, sendo uma analogia para a ditadura.

"Monstro da lagoa" era também uma expressão usada para descrever os corpos que surgiam flutuando nas águas do mar e de rios.

Estrofe Três

De muito gorda a porca já não anda

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai, abrir a porta

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade

Mesmo calado o peito, resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

Aqui, a ganância é representada pelo pecado da gula, usando a figura da porca gorda e imóvel como metáfora para ilustrar um governo corrupto e incompetente que deixou de funcionar.

O poder da polícia, que costumava causar feridas, foi se desgastando ao longo do tempo. Sua brutalidade, antes como uma "faca" afiada, agora já não tem o mesmo efeito. Seu poder está se enfraquecendo, pois não consegue mais causar ferimentos.

Pichação num muro onde se lê abaixo a ditadura

Ao narrar sua luta diária, o sujeito fala de "abrir a porta" como uma forma de libertação; nesse sentido, pode-se entender como um símbolo de queda de regime ou, numa leitura bíblica, como o começo de um novo tempo. O sujeito ainda descreve isso como tendo "essa palavra presa na garganta".

O eu lírico nos faz refletir sobre a importância de ter boa vontade, ao evocar a famosa passagem bíblica "Paz na terra aos homens de boa vontade". Entretanto, ele lembra que, infelizmente, a ideia de paz é algo que ainda está muito longe de se realizar.

Mesmo quando sentimos obrigados a reprimir nossas palavras e sentimentos, ainda conseguimos manter nosso pensamento crítico, ou como se diz popularmente "resta a cuca". Há também aqueles que não se ajustam à sociedade, os "bêbados do centro da cidade", que mesmo assim não perdem o sonho de viver melhor.

Quarto Verso

Talvez o mundo não seja pequeno

Nem seja a vida um fato consumado

Quero inventar o meu próprio pecado

Quero morrer do meu próprio veneno

Quero perder de vez tua cabeça

Minha cabeça perder teu juízo

Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Me embriagar até que alguém me esqueça

A última estrofe traz um sentimento de esperança nos seus versos iniciais, sugerindo que o mundo não se restringe ao que o sujeito conhece.

Sentindo que a sua existência não é definitiva, que está em um estado de incerteza e pode se desenvolver em inúmeras maneiras, o narrador exige o seu direito de escolha para si.

Afirmando a vontade de viver com autonomia, sem precisar cumprir os padrões morais de outras pessoas, esta pessoa deseja inventar seu "próprio pecado" e acabar com as suas próprias regras, morrendo do "próprio veneno".

Para acabar com o sistema opressor, temos que destruí-lo, no intuito de erradicar o mal pela raiz: "Vamos livrar-nos para sempre de sua influência".

Sonhando com a liberdade de expressão, a necessidade de se desvencilhar de tudo o que a sociedade conservadora lhe ensinou é extrema. É preciso recriar a própria consciência para não ficar mais sujeito ao controle dos outros ("perder teu juízo").

Protesto contra os crimes do regime militar

Nos dois versos finais, se faz uma menção precisa a um dos métodos de tortura praticados durante a ditadura militar: a inalação de óleo diesel. Ao mesmo tempo, refletem uma forma de resistência dos que sofriam esse tipo de tortura: a de fingirem desmaiar, para que o agressor parasse os seus maus tratos.

Explorando a História e o Significado da Música

A música "Cálice" foi criada para ser apresentada no evento Phono 73, que reunia os mais destacados artistas da gravadora Phonogram em duplas. No entanto, ao ser submetida à censura, não obteve aprovação.

Mesmo assim, os artistas fizeram tentativas de cantar a música, murmurando a melodia e repetindo a palavra "cálice". Infelizmente, eles foram impedidos de prosseguir e o som dos seus microfones foi rapidamente cortado.

Depois de muitos anos, Gilberto Gil compartilhou com o público algumas detalhes a respeito do contexto em que criou a música, bem como suas metáforas e simbologias.

Chico e Gil se reuniram no Rio de Janeiro para compor uma música que apresentariam juntos no show. Estes músicos ligados à contracultura e à resistência tinham a mesma ansiedade ao ver um Brasil paralisado pelo governo militar.

Na véspera da Sexta-Feira da Paixão, Gil escreveu os versos iniciais de uma letra que usaria para descrever o sofrimento do povo brasileiro durante a ditadura. Utilizando sua vivência para dar vida à música, Chico deu continuidade à escrita, enchendo-a de elementos do seu cotidiano.

Chico costumava beber Fernet ao longo das noites na casa de sua amiga, a Lagoa Rodrigues de Freitas. O cantor esclarece que é essa a bebida amarga citada na letra. Os artistas presentes na ocasião ficavam na varanda do local, desfrutando da vista das águas.

Eles esperavam, com um temor sombrio, que o "monstro da lagoa" surgisse: a força repressiva que estava à espreita e poderia atacar a qualquer instante.

Chico e Gil, conscientes do perigo que corriam e da atmosfera opressora que imperava no Brasil, criaram um panfleto que se expressava através de rimas e jogo de palavras - "cálice" e "cale-se". Como artistas e intelectuais de esquerda, eles usaram suas vozes para denunciar o autoritarismo e a barbárie que acompanhavam a ditadura política da época.

A música aborda os meios de opressão utilizados pela ditadura: a agressão física, a tortura, a morte e a ameaça constante que gerava o medo e o controle do discurso e, consequentemente, das vidas do povo brasileiro.

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Biografia de Chico Buarque

Chico Buarque

Nascido em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Hollanda é considerado um dos expoentes da MPB. Criador de músicas que desafiavam o regime autoritário, como "Apesar de Você", por causa da censura e da polícia militar ele foi obrigado a se exilar para Itália em 1969.

Ao retornar ao Brasil, Chico Buarque não deixou de lutar contra o totalitarismo. Seus protestos se tornaram evidentes em composições como "Construção" (1971) e "Cálice" (1973), no qual denunciava os efeitos sociais, econômicos e culturais gerados pelo regime autoritário.

Laura Aidar
Escrito por Laura Aidar

É arte-educadora, artista visual e fotógrafa. Possui licenciatura em Educação Artística pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e formação em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte e Design.