Sentimentos do Mundo de Carlos Drummond de Andrade


Escrito por Carolina Marcello

O livro "Sentimento do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade, foi lançado em 1940 e é o terceiro da obra do poeta.

Entre 1935 e 1940, quando o mundo ainda cicatrizava dos ferimentos da Primeira Guerra Mundial, com seu trágico legado de morte e destruição, as poesias desta obra foram escritas. Nessa época, também assistia-se à ameaça da ascensão do fascismo.

A obra do poeta é refletida nos seus poemas que, de maneira madura e universal, transmitem os sentimentos que lhe são caros.

Examinando e Compreendendo

Análise do Contexto da Obra

O final da década de 1930 foi um período extremamente significativo para a formação do Sentimento do Mundo de Drummond. Durante esse período, o poeta presenciou e refletiu sobre diversos acontecimentos complexos.

A ascensão do fascismo, do nazismo e dos conflitos regionais, como a Guerra Civil Espanhola, ameaçava a esperança de uma época de paz.

Drummond nutria a esperança de que o término da Primeira Guerra Mundial desse origem a uma época de tranquilidade e união entre as nações, em consonância com suas inclinações de esquerda.

A esperança de um momento histórico melhor contrasta com a frustração provocada pela realidade que continua a causar dor e sofrimento aos seres humanos. Essa dualidade está presente no Sentimento do Mundo.

No entanto, como toda obra importante, o livro não está preso ao seu contexto histórico. Embora seu conteúdo tenha como base o presente, o poeta consegue transcendê-lo em sua poesia. Com isso cria uma obra tão profunda que nunca deixará de ser relevante.

Sentimento do Mundo apresenta uma significativa mudança em relação às suas produções anteriores. Ao comparar com Brejo das Almas, seu trabalho precedente, nota-se um grande contraste. Enquanto Brejo das Almas é marcado pelo humor e pessimismo de Drummond, recheado de ironias, Sentimento do Mundo reflete um sentimento de pertencimento ao mundo e ao seu entorno, dando ênfase à introspecção.

Em O Sentimento do Mundo, Drummond se reafirma como um poeta que abraça o mundo, os homens, as coisas e não apenas sentimentos humanos "mesquinhos". Mostra-se solidário e compreensivo com relação ao mundo que o cerca.

Explorando a Análise e Interpretação

"Sentimento do Mundo" é o poema que abre a obra.

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo,

mas estou cheio escravos,

minhas lembranças escorrem

e o corpo transige

na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu

estará morto e saqueado,

eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordação

do sineiro, da viúva e do microcopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite que a noite

No livro, há uma figura do eu insignificante, devido à pequenez do sujeito diante da grandeza do mundo. O poeta se retrata como um sujeito limitado, que possui apenas duas mãos. Esta ideia se encontra ao longo de todo o livro.

Este indivíduo possui uma característica única: o sentimento do mundo, que é comumente interpretado como um sentimento de empatia para com todos os indivíduos e tudo o que o cerca.

Esta imagem de alguém que se sente ínfimo em relação aos problemas, mas que se torna maior ao prestar solidariedade, está presente em outras composições do livro.

O eu poético experimenta uma gama de paradoxos. Primeiro, ele se vê como insignificante, mas, em seguida, acontece uma transformação. O sujeito está ligado à sua história ("cheio de escravos"). Para se situar diante do sentimento de unidade, é necessário mudar, enterrar as lembranças e se direcionar para o amor à humanidade.

O poeta está consciente da realidade, mas sente-se alienado e desatento aos males que a rodeiam. Solidário e integrado ao mundo, não consegue escapar à contradição que o cerca: a de viver num tempo de guerra e fome ao mesmo tempo. Perplexo, procura encontrar uma maneira de se integrar a essa realidade, pedindo desculpas por sua dispersão.

O poeta está sozinho, envolto em lembranças que desaparecem como névoa ao sol. O que resta são as recordações dos seres que amou e foram embora. O dia que se anuncia é mais tenebroso que a escuridão da noite, tornando a solidão ainda mais profunda.

No livro Sentimento do Mundo, a noite é retratada de duas maneiras: a primeira como algo acolhedor para a alma, servindo como uma morte que traz tranquilidade àqueles que pensam em se matar; a segunda como algo assustador, em que tudo é cercado por sombras e escuridão, afastando a esperança.

O sujeito poético oscila entre o “eu” que se encontra em qualquer lugar, solidário à humanidade, e o “eu” melancólico, que ainda permanece muito sozinho e isolado da realidade.

No poema Confidência do itabirano, surge esse segundo "eu", que se opõe ao primeiro presente no poema Sentimento do Mundo.

Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,

este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!

Nascido em Itabira, Minas Gerais, o poeta Drummond faz uma comparação entre a cidade e si mesmo. Itabira, famosa por suas minas de ferro, foi a inspiração para inúmeras analogias por parte do escritor.

O poeta faz uma analogia entre o metal duro e frio e a sua personalidade, e a paisagem da cidade cercada por montanhas, sem horizontes, assim como a sua vida amorosa. Por fim, a simplicidade da cidade do interior é comparada com a sua própria.

Ao escolher as obras a serem incluídas em seus livros, Carlos Drummond de Andrade dava muita atenção à ordem de inclusão de seus poemas. Ele não organizava seus escritos de acordo com a sequência de escrita, mas de acordo com as escolhas que pensava serem mais adequadas a seu propósito. Os dois primeiros poemas geralmente foram escolhidos com o intuito de oferecer um panorama geral do livro.

Neste livro, o sujeito se coloca diante de temáticas contraditórias, como a inserção e o isolamento, o cosmopolita e o provinciano. Através de dois poemas, o autor apresenta um resumo dessa persistência em meio às oposições.

O Sentimento do Mundo traz uma profunda reflexão sobre temas tão reais quanto o medo, a solidão, a guerra, a fome e a solidariedade. Por meio de sua poesia, o poeta nos faz mergulhar de cabeça no mundo atual, real e extremamente presente.

Os Melhores Poemas

Neste poema, o eu lírico parece ter suspensos todos os outros sentimentos, como o amor e o ódio, e se concentra apenas no medo. Esta é uma emoção universal, que todos compartilhamos. O eu solitário encontra-se inserido no mundo, entregando-se a esse sentimento.

Provisoriamente não cantaremos o amor,

que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.

Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,

não cantaremos o ódio, porque este não existe,

Neste poema, o tempo é retratado como algo preciso e inabalável, trazendo consigo elementos simples e ásperos. Não há espaço para sentimentos como amor, tristeza ou convívio. Para o poeta, tempo e vida são materiais de reflexão.

Neste triste contexto, o sentimento que domina é a solidão, pois não há soluções para os problemas, apenas guerras e brigas. O sujeito lírico se vê cansado, desinteressado e sem ânimo para prosseguir, tendo de se contentar somente com a sobrevivência.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

O sujeito deste poema nos traz o mundo do agora. Não se trata do passado caduco nem do futuro incerto, mas do presente. O poeta faz uma celebração da vida ao lado de seus companheiros, caminhando juntos e com o presente se mostrando grande.

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

O poeta propõe que sua poesia se envolva com o tempo presente e a vida atual, em vez de focar em amores, sofrimentos ou histórias de aventura. Ele não cantará sobre o que foi ou o que poderia ter sido, mas sobre o que é e o que está acontecendo agora.

O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

A noite que se alastra sobre a cidade é a figura alegórica da ascensão do fascismo e da iminência da guerra. Os homens, as ruas e as casas estão mergulhados nela e os suicidas parecem ser os únicos que possuem a razão. Sem solução aparente, o poema nos faz refletir sobre a magnitude do momento.

O poeta prevê um alvorecer que levará ao fim da noite, por mais tênue que este sinal seja. É incontornável que a aurora venha após a noite, entretanto, o poeta sabe que isto só acontecerá após outra batalha, e com um doloroso número de vidas perdidas.

Havemos de amanhecer.

O mundo se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.

No início do poema, o autor critica a alienação do trabalho, onde ações não produzem nenhum efeito ou resultado. O personagem, por sua vez, se sente preso nessa lógica, e vive em um universo que não lhe oferece satisfação.

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Embora se disfarcem na rotina, a fome, o frio e o desejo sexual são desejos e necessidades. Políticos e profetas às vezes apresentam soluções para as questões dos trabalhadores exaustos que, no entanto, não resolvem o problema.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, a chegada do somo é como um abrigo, oferecendo a oportunidade de fugir da realidade e adiar o desespero. É a última alternativa para não recorrer ao suicídio.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

O sujeito é confrontado com o despertar e encontra-se diante de algo maior e mais poderoso do que ele. O seu eu só pode acompanhar a Grande Máquina, conversando com fantasmas do passado, projetando um futuro próprio e remoendo arrependimentos.

O sujeito se sente insignificante no mundo. Sem poder tomar ação, ele aceita a desigualdade como fundamental da realidade que enfrenta.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Análise de Obra de Carlos Drummond de Andrade

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Carolina Marcello
Escrito por Carolina Marcello

Formou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela mesma instituição. Durante os estudos universitários, foi co-fundadora do Grupo de Estudos Lusófonos da faculdade e uma das editoras da revista da mesma, que se dedica às literaturas de língua portuguesa.