Até os dias de hoje, a crônica Eu sei, mas não devia, de Marina Colasanti (1937), publicada no Jornal do Brasil em 1972, ainda nos cativa.
Costumamos nos acomodar em uma rotina sem graça, que impede que admiremos a beleza da vida. Ela nos faz lembrar disso.
Por que Eu Sei, mas Não Devia?
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Avaliação de 'Eu Sei, mas Não Devia'
Nesta crônica, Marina Colasanti nos instiga a pensar sobre a cultura de consumo, nos motiva a repensar as desigualdades presentes na nossa sociedade e nos relembra o quanto o tempo passa rápido, sem que possamos aproveitar o que temos ao nosso redor.
À medida que vamos passando pelos parágrafos, nos tornamos conscientes do quanto fomos capazes de nos adaptar às situações ruins. Em algum ponto, nossas ações se tornam automáticas. O narrador descreve como, gradualmente, permitimos que essas circunstâncias afetem nossa vida sem prestar atenção, até que ficamos tristes e sem energia, sem perceber que isso está acontecendo.
Com o passar do tempo e a agitação da vida nos despojando aos poucos da nossa autenticidade, Marina nos instiga a refletir: seremos nós mesmos ou outra pessoa que alguém espera que sejamos?
Os Riscos da Rotina
Neste livro, o narrador mostra situações bastante comuns e que todos nós conseguimos facilmente nos identificar. Ele retrata as nossas vidas cotidianas de maneira realista e quase como um espelho.
A apatia tomou conta de nós: perdemos a reação, a identidade, a empatia e a euforia. Não estamos mais entusiasmados com a vida e sim como meros espectadores dela, desperdiçando todo o seu potencial.
Marina fala especialmente sobre o contexto apertado e estressante de viver em uma área urbana. Na vida cotidiana, somos confrontados com inúmeras situações marcadas pelo conformismo e pela acomodação.
Ao escolhermos viver de acordo com o que achamos que "devemos", estamos nos privando de experimentar coisas pelas quais sentiríamos prazer e nos fariam sentir especiais.
Marina Colasanti fez uma bem-sucedida advertência para que nunca caiamos na armadilha de uma rotina sem sentido.
A Escrita: Estilo e Formato
O narrador recorre ao polissíndeto ao mencionar "eu sei, mas não devia", pois a repetição de conectivos (eu, mas) reforça o sentimento de angústia que está por trás da frase.
O uso repetido da mesma estrutura frasal tem como objetivo aumentar a expressividade da mensagem. Ao rememorar o tema abordado e sentirmos o mesmo cansaço que experimentamos diariamente, compreendemos melhor o que está sendo dito.
Não Devia Saber, Mas Eu Sei
Antônio Abujamra recitou a crônica de Marina Colasanti, que está completa e acessível na internet.
Discussão acerca da publicação de Eu sei, mas não devia
A crônica "Eu sei, mas não devia" foi publicada pela primeira vez em 1972, no Jornal do Brasil, e foi posteriormente transformada em um livro que se tornou eterno.
A obra "Eu sei, mas não devia" da autora foi reunida em formato de livro em 1995 pela editora Rocco. Em 1997, recebeu o prêmio Jabuti e compreende crônicas sobre temas variados.
Esta coletânea, com 192 páginas, recebe como nome a crônica mais conhecida de Marina Colasanti - "Eu sei, mas não devia".
A Vida de Marina Colasanti
Marina Colasanti nasceu em 1937 na cidade de Asmara, capital da Eritreia. Em 1948, ela e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro, estabelecendo-se ali.
Formada em artes plásticas, Marina não se limitou a esse campo. Ela também seguiu carreira como jornalista no Jornal do Brasil, tradutora, publicitária e desenvolveu diversos programas culturais para a televisão.
Marina tem sido bastante aclamada pela crítica, tendo recebido uma série de prêmios, como o Jabuti, o Grande Prêmio da Crítica da APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional.
A escritora e o também autor Affonso Romano de Sant'Anna são casados e têm duas filhas, Fabiana e Alessandra.
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