Gil Vicente é considerado o pai do teatro português e é um ícone da cultura lusitana. Seu trabalho mais celebrado, o Auto da Barca do Inferno, foi escrito em 1517 e é composto por um único ato. Esta peça possui um forte viés cômico.
Principais Pontos de Resumo
O Auto da Barca do Inferno, escrito em 1517, é parte da Trilogia das Barcas. Esta peça é conhecida como Auto da moralidade, pois foi representada para o rei Manuel I de Portugal e sua rainha Lianor. O Auto da Barca do Inferno consiste em um único ato e é acompanhado pelo Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória.
O diabo é o protagonista do Auto da Barca do Inferno. Ele é o responsável por pilotar a barca e convidar, individualmente, os seus passageiros. O primeiro é um fidalgo, que vinha acompanhado por um pajé. Ao ver a barca do Paraíso pela distância, ele implora para embarcar, mas é negado.
O segundo a chegar foi o Onzeneiro, ele também embarcou na barca em direção ao Inferno, assim como o Fidalgo. Por outro lado, o Parvo surgiu em terceiro lugar e curiosamente, foi o único com destino feliz.
Parvo — Hou da barca!
Anjo — Que me queres?
Parvo — Queres-me passar além?
Anjo — Quem és tu?
Parvo — Samica alguém.
Anjo — Tu passarás, se quiseres; porque em todos teus fazeres per malícia nom erraste. Tua simpleza t'abaste para gozar dos prazeres. Espera entanto per i: veremos se vem alguém, merecedor de tal bem, que deva de entrar aqui.
Logo após o parvo, o sapateiro, o frade e uma moça formosa chegam ao cais. Contudo, não possuem autorização para embarcar na barca com rumo ao paraíso.
Brízida Vaz, uma bruxa alcoviteira, foi impedida de embarcar na barca da Glória. O judeu que a acompanhava e carregava uma cabra também não teve permissão de entrar no céu, uma vez que não era cristão.
Na barca do inferno estão presentes o corregedor e o procurador, mas cada um deles por motivo diferente: eles privilegiam seus interesses pessoais em detrimento da justiça e do bem-estar do povo.
Por último, os cavaleiros que lutaram em nome do cristianismo durante sua vida, são levados ao paraíso por um anjo, em uma barca.
Caracteres
O Maligno
Belzebu é conhecido por guiar uma barca rumo ao inferno.
Um Anjo no Céu
Dirija o navio da Glória em direção ao céu.
Nobre Fidalgo
Acompanhado por um pajé, ele carrega consigo um longo rabo e uma cadeira para as costas. Finalmente, ele pega a balsa rumo ao porto de Lucifer.
Enganador
O onzeneiro, um tipo de prestamista, acompanhou o nobre na barca que o conduziria ao inferno.
A Pequenez do Parvo
Ao buscar a paz na simplicidade, você será levado à felicidade eterna do paraíso.
Fabricante de Sapatos
O sapateiro acreditava que, após seguir os rituais religiosos, teria direito a embarcar na barca do paraíso. Infelizmente, devido às suas ações fraudulentas, foi impedido de se juntar à nau do anjo.
Padre Religioso
Nem o frade, acompanhado de uma moça, seria admitido no paraíso.
A História de Brízida Vaz
Como uma bruxa, prostituta e alcoviteira, ela não foi autorizada a embarcar na barca da Glória.
A Experiência Judaica
Não é possível seguir o caminho para o paraíso a não ser que se seja cristão.
Correção de Erros
O corregedor foi condenado imediatamente à barca do inferno, pois somente defendia seus próprios interesses, contrariando o que era suposto.
Procurando Resultados
Ele era extremamente corrupto, pensando apenas em si mesmo; como resultado, seguiu diretamente para o navio de Belzebu.
A Saga dos Cavaleiros
Aqueles que consagraram suas vidas à igreja cristã, os Cavaleiros de Deus, são recompensados com a paz divina no mar infinito do céu.
Explorando a História
Gil Vicente foi um testemunho vivo da expansão ultramarina de Portugal. Durante aquele período áureo, viu como as navegações de Vasco da Gama mudaram o foco do país para a exploração de colônias. O resultado foi que Portugal se viu abandonado.
Gil Vicente formulou fortes críticas ao contexto social português de seu tempo: às normas, à ética, à corrupção humana e à instituição católica da igreja. Embora não seja contra a igreja, ele acreditava que ela estava sendo usada para práticas equivocadas como a venda de indulgências e o não-cumprimento do celibato por parte de padres e freiras.
Ele denunciou as falhas da sociedade medieval e moderna, enfatizando a estrutura opressora e sem abertura. Tornou-se um porta-voz, revelando a hipocrisia da sociedade: frades sem vocação, a corrupção dos juízes que privilegiavam a nobreza, o abuso aos trabalhadores rurais.
Não se tem registro documental de teatros encenados em Portugal antes de Gil Vicente; apenas breves representações, que ostentavam características de cavaleirismo, religiosidade, satírica ou burlesca.
As produções de Gil Vicente estavam repletas de influências castelhanas e possuíam características próprias de Juan del Encina, poeta palaciano castelhano. Alguns trechos evidenciam a imitação da linguagem usada por ele. Devido à corte portuguesa ser bilíngue, a cultura castelhana estava bem presente na vida cotidiana na época.
Segundo Almeida Garrett, a figura de maior destaque na história do teatro português é, sem dúvida, Gil Vicente. Embora não tenha sido o criador deste gênero, foi ele que estabeleceu os fundamentos para a formação de uma escola nacional de teatro que foi passada para as gerações seguintes.
Qual era o local de apresentação das obras de Gil Vicente?
A obra do autor Gil era produzida exclusivamente para os palácios reais, sendo o próprio sustentado pela rainha. Seu teatro, mesmo exaltando o senso de espontaneidade e espírito popular, era apresentado para a elite, e contava com forte espaço para o improviso. Todas as obras de Gil tinham como base a espontaneidade e a tradição popular.
Análise da Escrita de Gil Vicente
Gil Vicente destacou-se na literatura portuguesa recorrendo ao formato poético teatralizado e rimado. Ao escrever, incorporava às suas peças a diversidade linguística e social da época, criando diálogos que refletiam o vocabulário de diferentes camadas da sociedade, sendo os nobres e os camponeses os principais personagens.
Sátira, riso, ridículo e achincalhe são técnicas frequentemente usadas por Gil Vicente. Seu trabalho famoso, Auto da barca do inferno, tinha um forte tom educativo. A sátira era usada para destacar as questões sociais da época.
O autor usou os tipos sociais para criar personagens caricaturais e folclóricas em suas peças. Estes eram descritos com extremo detalhamento, desde o seu comportamento, vestimentas e linguagem. Isso foi usado para criar uma alegoria central que servia como pretexto para o desfile dos diferentes tipos ou casos.
Em geral, os personagens do teatro não se envolvem em conflitos psicológicos como nos clássicos. Não se trata de um teatro de personagens com contradições internas, mas sim de uma sátira social, um teatro de ideias, polêmico.
Os tipos humanos presentes nas peças e seus respectivos significados simbólicos são claramente definidos. O pastor, o camponês, o escudeiro, a moça de vila, a alcoviteira e o frade representam suas respectivas condições sociais. Roma simboliza a Santa Sé, enquanto que os Profetas, Deus, o Diabo, os anjos e o Parvo são figuras alegóricas. Não há esforço para individualizar os personagens, todos são representações tipificadas.
A ingenuidade e ignorância dos personagens humildes, os tipos folclóricos, divertem a corte. Em sua obra, Gil Vicente se utiliza da sátira para satirizar o clérigo, especialmente o frade, expondo sua incoerência na conduta mundana e religiosa, como a procura por prazer frugal, a ganância e a cobiça.
Os Escudeiros são frequentemente retratados como aqueles que imitam os padrões de nobreza, sendo vistos como bravos e cavaleiros, mesmo quando passam por dificuldades. Por outro lado, os fidalgos supostamente são presunçosos, explorando o trabalho alheio, e os juízes, corregedores e meirinhos costumam ser retratados como figuras corruptas.
A obra de Gil Vicente critica duramente os descaminhos da corte, a corrupção, o nepotismo e o uso exagerado dos recursos públicos.
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Quem era Gil Vicente?
Gil Vicente, que viveu entre cerca de 1465 e 1536, encenou a sua primeira peça em 1502 e foi colaborador de Garcia de Resende no Cancioneiro Geral. Algumas de suas obras foram publicadas em vida, enquanto outras foram censuradas. Seus trabalhos mais conhecidos incluem: o Auto da Índia (1509), o Auto da barca do inferno (1517), o Auto da Alma (1518), a Farsa de Inês Pereira (1523), o D.Duardos (1522), o Auto de Amadis de Gaula (1523) e o Auto da Lusitânia (1532).
Em 1562, Luís Vicente reuniu os trabalhos do seu falecido pai, Gil Vicente, numa coleção denominada "Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente". A autenticidade destas obras é questionada, visto que o filho supostamente fez pequenas alterações no texto.